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    ENTREVISTA | Carlos Velloso: ‘Em meio à crise, estamos construindo no País uma consciência ética’
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    Carlos Velloso, ex-presidente do STF e do STJ, defende Sérgio Moro, condena o foro privilegiado e avisa: “Só um mau caráter’ seria capaz de pedir favores a alguém que nomeou.

    Por Sonia Racy, do ESTADÃO – Carlos Velloso foi ministro e presidente do STF e do STJ, ensinou direito constitucional na PUC de Minas e na UnB em Brasília, publicou mais de 20 livros e, olhando o redemoinho político, econômico, moral, social e ético à sua volta, tira duas conclusões. A primeira é que, na conturbação geral, “resta incólume o Judiciário”. A segunda: “Estamos, a partir da Constituição de 1988, construindo uma consciência ética no País” – conclusão que ele tira do desempenho recente de instituições como Polícia Federal e Ministério Público e da adoção de várias leis voltadas para a transparência e o combate à corrupção.

    Nesta entrevista a Gabriel Manzano, ele ataca o foro privilegiado – “uma excrescência…” – e ironiza a versão de que há, no Supremo Tribunal Federal, os “ministros de FHC”, ou “de Lula”, etc. “Quem chega ao Supremo com uma biografia não vai emporcalhá-la”. E vai além: “Só um presidente mau caráter seria capaz de pedir, ao ministro que indicou, algo capaz de emporcalhar sua biografia”.

    Filósofo, advogado, escritor e jurista, Velloso admite que “o momento é conturbado”. Mas aplaude o juiz Sergio Moro, acusado pela presidente da República pelo desplante de revelar à nação uma conversa sua. “O juiz tem atuado com severidade, o que é bom, mas com critério e respeito ao processo legal”, pondera o jurista. Ele apoia também a defesa do STF, do STJ e dos MPs feita por várias autoridades – entre elas João Otavio Noronha, do STJ, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, do STF. A seguir, os principais trechos da entrevista.

     

    O Judiciário brasileiro está no meio de um redemoinho – empenhado em cumprir a lei, mas atento à chamada “voz das ruas”. Até que ponto esta deve valer em suas decisões? Pode-se falar em um “Judiciário em tempos de crise?”

    Realmente, o Brasil vive fase conturbada. Temos crise política, governo praticamente parado, a economia derretendo, desemprego crescendo, indústria encolhendo, lojas fechando, inflação avançando. E temos, sobretudo, crise ética. A corrupção na Petrobrás e em outros órgãos, com o desvio de bilhões de reais, é talvez a maior do mundo. O partido da presidente da República está envolvido até o pescoço na corrupção. O presidente da Câmara está denunciado no Supremo, com a denúncia recebida. O presidente do Senado investigado pela Polícia Federal a mando do Supremo. Resta incólume, felizmente, o Judiciário. Não se tem notícia do envolvimento de nenhum juiz. O STF tem se comportado bem, sabendo conviver com as circunstâncias vigentes – em que a sociedade reclama ética, moralidade e punição aos corruptos. Concluo: não, não existe algo do tipo “Judiciário em tempos de crise”, mas um Supremo atento à sua missão de guardião da lei. E juízes de 1º grau e membros do Ministério Público que se cansaram de ser responsabilizados pela impunidade. Acontece aqui o que aconteceu na França, nos anos 90, a revolução dos juízes. O bravo juiz (Sérgio) Moro é bem o exemplo.

     

    Há um forte debate sobre o direito – ou não – do juiz Sérgio Moro de divulgar o grampo em que aparece a presidente Dilma Rousseff conversando com Lula. Ele cometeu um abuso?

    Penso que não. A Constituição consagra o princípio da publicidade dos atos processuais, ao estabelecer, no art. 5º, LX, que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.” Ora, as gravações estão nos autos, constituem atos processuais e o processo é público. O telefone que estava grampeado era o do investigado. A presidente telefonou para o investigado e veio para os autos o diálogo maldito, que deve ser avaliado pelo Ministério Público. E este, se entender que houve a prática de crime por parte da presidente da República e de novo crime por parte do investigado, pedirá a remessa das peças ao Supremo. O juiz Moro está conduzindo as ações penais com severidade, o que é bom, mas com critério e com respeito ao devido processo legal.

     

    Os grampos da PF trouxeram a público seguidas ofensas do ex-presidente Lula ao STF, ao STJ e ao Judiciário de modo geral. Para onde isso caminha?

    Na última sexta-feira o ministro João Otávio Noronha, do STJ rebateu – aplaudido pelos colegas – as aleivosias dirigidas àquele tribunal. Horas depois, o decano do Supremo,Celso de Mello, falando em nome da sua corte, reduziu a pó as ofensas feitas à casa e aos juízes brasileiros. Seu discurso lembra a fala do presidente Ribeiro da Costa que, no governo militar, proclamou que, se alguma medida de força atingisse qualquer dos juízes, ele fecharia o tribunal e entregaria as chaves no Palácio do Planalto. O Supremo – e, de resto, o Judiciário – têm tradições centenárias que precisam ser respeitadas e defendidas.

     

    Acha que tem havido mau uso do foro privilegiado?

    O foro privilegiado é algo não condizente com a república. Considero-o ofensivo aos princípios republicanos e aplaudo decisões do Supremo que não o admitem e que mandam para o juízo de 1º grau quem, pela Constituição, não detém o privilégio. Quando estava no Supremo eu já o classificava como uma excrescência. Temos esse foro por termos tido monarquia, que se caracteriza pelas distinções, pelos privilégios. Os Estados Unidos, que sempre foram república, não o conhecem.

     

    Muita gente entendeu que, ao interferir no rito do impeachment na Congresso, o STF invadiu funções do Legislativo. Foi um caso de judicialização da política?

    Não há, propriamente, uma judicialização da política. O que há é uma classe política fraca, um Legislativo que se omite e parlamentares levando questões políticas à apreciação do Supremo – que não pode omitir-se na prestação jurisdicional. E este tem decidido, de regra, bem, com o aplauso da sociedade. Menciono, por exemplo, a proibição, no âmbito dos Três Poderes, do nepotismo. Também a perda do mandato por mudança de partido, assim em favor da fidelidade partidária. E ainda a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Muitos podem discordar desta última, mas cumpre reconhecer que é uma decisão do seu tempo. E os homens e as instituições devem ser do seu tempo, sabendo conciliar o novo com o tradicional.

     

    Rodrigo Janot, procurador-geral, reagiu com dureza a “cobranças” de Lula por sua indicação (em 2013, por Dilma Rousseff). Ricardo Lewandowski, indicado na era Lula para o STF, respondeu igualmente ao ex-presidente por ter chamado essa corte de “acovardada”. Isso acaba com a história de que temos “ministros de FHC”, “de Lula” ou “de Dilma”?

    Não faz sentido falar em ministros do FHC, do Lula, do Collor…Nenhum ministro chega ao Supremo de graça. Geralmente chega com uma biografia construída ao longo de anos. Ele pode ser grato a quem o nomeou, mas gratidão não se confunde com servilismo ou sacrifício da consciência. Quem chega à corte com uma biografia não vai querer emporcalhá-la. Só se for um idiota. E um idiota não deveria estar lá. Somente um presidente mau caráter seria capaz de pedir ao ministro que indicou algo capaz de emporcalhar sua consciência e sua biografia.

     

    Teremos em breve a votação do impeachment de Dilma no Congresso, e o STF manteve o voto aberto. Está correto?

    O voto aberto, no Parlamento, deve ser a regra, para que os representados possam fiscalizar os seus representantes. Mas, a meu ver, há uma exceção: tratando-se de eleição, quando o voto deve ser secreto.

     

    Outra decisão mantida no STF foi que o Senado pode reavaliar do zero o processo da Câmara.

    Essa matéria exige considerações. A Câmara, representante do povo, detém a competência constitucional para admitir a acusação contra o presidente pelo voto de dois terços dos seus membros (art. 86 da Constituição). E cabe ao Senado, representante dos Estados, o processo e o julgamento do presidente. A Lei 1.079, de 1950, acolhida nas Constituições de 1967 e 1988, estabelece o processo em conjugação com os regimentos internos do parlamento. No impeachment do ex-presidente Collor, em 1992, que o Supremo arbitrou, o procedimento adotado foi este, no Senado, segundo, aliás, resolução dessa Casa com a colaboração do presidente do Supremo, publicada no Diário do Congresso (em 8/10/92): recebida a resolução da Câmara, que autoriza a abertura do processo de impeachment, a denúncia é lida em plenário e encaminhada a uma comissão especial. Esta tem dez dias para dar seu parecer – se o processo deve ser levado adiante ou não. Este é lido no plenário e publicado no Diário do Congresso. Na sessão seguinte haverá discussão e votação nominal. Rejeitado o processo, arquivam-se os autos. Aprovado, por maioria simples, a denúncia popular vai adiante. O presidente do STF assume a presidência do Senado. A presidente tem 20 dias para a defesa e é afastada do cargo. Segue, então, o processo.

     

    Tem havido críticas duras, principalmente entre advogados, à recente decisão do Supremo de determinar a prisão de réus já na segunda instância. Por outro lado, condena-se também a estrutura atual em que, na prática, há quatro instâncias e a sentença final demora demais. Como vê o problema?

    A decisão do Supremo, de dar interpretação correta e racional à presunção de não culpabilidade, afastando a jabuticaba brasileira da prisão somente após o trânsito em julgado da sentença, contribuirá, sobremaneira, para fechar uma janela da impunidade e para colocar seriedade no processo penal. Mas, sem dúvida, o Judiciário continua precisando de reforma. Mesmo porque a sua reforma, para valer, ainda não foi feita. Sim, há excesso de recursos e é irracional a existência de quatro instâncias. Veja-se o caso do Supremo. Ele é a Corte Constitucional. Entendo que, como tal, deveria estar julgando apenas as ações do controle concentrado e os recursos extraordinários. Não devia ter competência criminal, a não ser para o julgamento dos chefes de poderes.

     

    Fala-se muito no combate à corrupção mas o desprezo pela lei é marca registrada na vida brasileira. Muitos cidadãos ignoram normas de impessoalidade ou moralidade. Como vê a questão?

    Só a partir da Constituição de 1988 é que os princípios da impessoalidade e moralidade ganharam as galas de princípios constitucionais. A Constituição de 1988 trouxe belas inovações, além disso. Eu me lembro de, quando juiz em Minas, a maioria dos delegados de polícia eram oficiais reformados da PM ou leigos que ficavam sob o guante dos chefes políticos locais. A partir de 1988, todos os delegados, sem exceção, devem ser bacharéis em Direito – e admitidos por concurso público. Ganharam autonomia – se não total, ao menos suficiente para atuar com dignidade e independência.

     

    Em tempos recentes, o fenômeno se fortaleceu.

    A atuação da Polícia Federal e, em alguns dos Estados, da Polícia Civil, tem sido ótima. E o que dizer do Ministério Público, seja o federal, sejam os estaduais? Enfim, o que é preciso dizer é que estamos, com a Constituição de 1988, construindo uma consciência ética no País. A Lei de Improbidade Administrativa, a Lei Anticorrupção, a Lei da Ficha Limpa e Lei da Transparência dos atos da administração são exemplos do que digo. As movimentações populares contra a corrupção, em favor da ética, são edificantes. Cito aqui homens como Modesto Carvalhosa, Cláudio Abramo e Gil Castello Branco, mas há tantos outros… Eles não têm pregado em vão. Que não esmoreçam.

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